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Sem agrotóxico e sem adubo

Foto: Célia Thomé

O Brasil está dando um show no campo. É um dos primeiros na produção de cereais, leguminosas e oleaginosas, com a expectativa de colher, este ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma safra de 157,7 milhões de toneladas, 1,5% menos que em 2011, mas, mesmo assim, um número grandioso ante a produção de épocas passadas e a oferta de outros países. Também é destaque no cultivo de frutas, hortaliças e legumes, enfim, um digno representante do agribusiness internacional, caminhando rapidamente para se transformar em celeiro do mundo.

Todavia, ao mesmo tempo em que festeja essa condição de grande fornecedor mundial de alimentos, o país vem se tornando um dos maiores usuários de agrotóxicos do planeta, com a marca de 1 milhão de toneladas anuais, número que, para alguns enfronhados no assunto, já o coloca em primeiro lugar. Representantes da indústria química, contudo, lembram que o Brasil é um país tropical e, por isso mesmo, capaz de tirar da terra de duas a três safras irrigadas por ano – ao contrário de nações onde o inverno é rigoroso –, e que, sem a aplicação de defensivos, é praticamente impossível combater as pragas e as ervas daninhas.

Seja como for, o fato é que, como uma reação ao uso abundante de agrotóxicos, vem ganhando força um ramo de atividade que, embrionário anos atrás, começa a mostrar sua cara: a produção de alimentos orgânicos. Antes restrito aos roçados de alguns abnegados agricultores, hoje o plantio de um sem-número de alimentos que primam pela ausência de defensivos agrícolas e de adubos químicos caminha, mesmo que ainda timidamente, para se consolidar no mercado.

Diante da demanda da agricultura tradicional, o consumo do produto que se convencionou chamar de saudável ainda é pouco representativo. Todavia, assim como se deu com uma série de outros segmentos empresariais que começaram de baixo para ganhar projeção à medida que os anos passavam, também aqui o reconhecimento virá com o decorrer do tempo.

Calcula-se que o setor tenha movimentado a expressiva soma de R$ 350 milhões em 2010, informa Priscila Terrazzan, engenheira-agrônoma do Instituto BioSistêmico (IBS), entidade fundada em 2006 com o propósito de promover o desenvolvimento sustentável em âmbito social e ambiental. Ao que parece não há unanimidade quanto a esses dados. Outras fontes sustentam que naquele exercício o faturamento chegou a R$ 500 milhões, um desencontro de números que pode ser explicado pelo fato de o setor ser recente e, como tal, carecer de dados consolidados que possibilitem traçar estatísticas de fato conclusivas. Apesar disso, já há consenso quanto às taxas de crescimento do mercado, que estaria evoluindo em até 30% ao ano – foi assim em 2010 e em 2011. “Curiosamente, os negócios lá fora aumentam na mesma proporção”, informa Priscila, acrescentando que a ampliação das vendas internas passou a atrair as atenções de empresários que antes só tinham olhos para a exportação.

No último censo feito no campo, em 2006, o IBGE levantou que os “produtores de orgânicos representavam 1,8% (ou 90.425) do total de estabelecimentos agropecuários” em atividade. E que eles se dedicavam, principalmente, à criação de animais (41,7%), às lavouras temporárias (33,5%), à lavoura permanente (10,4%), à horticultura/floricultura (9,9%) e à produção florestal (3,8%). A pesquisa revelou, também, que, entre os ruralistas avessos ao uso de agrotóxicos, 77,3% eram proprietários das terras que cultivavam, 41,6% tinham o ensino fundamental incompleto e 22,3% eram analfabetos. “Não foram consideradas orgânicas as práticas agrícolas que, apesar de não aplicar agroquímicos, não puderam ser identificadas como tal pelo produtor ou, ainda, quando não eram do conhecimento deste as normas técnicas exigidas pelas instituições certificadoras”, esclarece o IBGE.

Selo de garantia

Certificação, essa é a palavra-chave que está contribuindo para abrir novas frentes ao setor e seduzir a parcela dos consumidores que busca alimentos sem agrotóxicos mas quer ter certeza quanto à qualidade dos produtos. Afinal, e isso também vale para a agricultura tradicional, na maior parte das vezes não sabemos nem a origem do que estamos levando para casa. No caso do alimento livre de defensivos agrícolas, a obediência a padrões técnicos, assegurada pela certificação conferida por empresas especializadas em atividade no país, está tendo o mérito de remover desconfianças e abater resistências.

“Estamos atravessando um período muito importante para o setor, com a atuação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que deu vida a mecanismos de controle e avaliação da qualidade e criou um selo único para identificação dos produtos orgânicos”, acentua a agrônoma Priscila. A técnica do IBS está se reportando à lei 10.831, de 2003, que passou a vigorar em janeiro do ano passado e que, em seu artigo 3º, diz textualmente que, “para sua comercialização, os produtos orgânicos deverão ser certificados por organismo reconhecido oficialmente, segundo critérios estabelecidos em regulamento”.

A regulamentação, a bem da verdade, demorou um pouco. Viria em anos seguintes por meio de decretos e instruções normativas, normas específicas que estabeleceram os três mecanismos de controle que hoje garantem a qualidade orgânica dos produtos. São eles: certificação por auditoria, sistemas participativos de garantia e controle social. O primeiro diz respeito à certificação conduzida por empresas cadastradas no Mapa, entidades que também fiscalizam os produtos. O segundo refere-se a grupos formados por produtores, consumidores, técnicos e pesquisadores que se autocertificam, estabelecendo procedimentos de verificação das normas de produção orgânica. No entanto, assim como no exemplo anterior, estes também precisam ser credenciados no Mapa, tanto que apenas essas duas modalidades de certificação estão autorizadas a lançar mão do selo Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica (SisOrg).

Já o terceiro instrumento, que a legislação chama de “controle social para a venda direta sem certificação”, privilegia pequenos agricultores, que podem comercializar ao público seus produtos sem a garantia do selo, bastando para tanto uma declaração que garanta sua qualidade orgânica. O processo é exclusivo para produtores familiares, que, mesmo assim, deverão estar cadastrados em um banco nacional de orgânicos, que pode ser acessado pela internet. Segundo a Divisão de Controle de Qualidade Orgânica do Mapa (DCQO), cada produtor terá um número gerado pelo sistema e receberá um documento de comprovação que funciona como um alvará de licença. Para isso, no entanto, os agricultores precisam estar, obrigatoriamente, vinculados a uma organização de controle social.

O comércio nesse ramo de atividade depende da relação de confiança entre produtores e consumidores e da seriedade com que os negócios são conduzidos. Na produção dos alimentos orgânicos não se deve perder de vista o uso responsável da água, do ar, do solo e de outros recursos naturais úteis ao homem. Portanto, conforme destaca o Mapa, “verduras, legumes, frutas, carnes, pães, cafés, laticínios, sucos e outros produtos in natura e processados só podem ser considerados orgânicos se forem cultivados dentro de ambiente de plantio orgânico, respeitando todas as regras estabelecidas”.

Sabe-se que, no início deste ano, os agricultores inscritos no banco de dados do Mapa somavam 15 mil, um número ainda pequeno diante do tamanho da agricultura brasileira e do próprio total das pessoas que vivem da produção de orgânicos. É, todavia, um bom e promissor começo, já que existe a expectativa de que milhares de outros ruralistas interessados em preservar a biodiversidade e as atividades biológicas do solo também procurem o Mapa para regularizar sua situação.

O fato é que, desde 1º de janeiro de 2011, os produtos orgânicos brasileiros só podem ser comercializados se estiverem identificados com o selo do SisOrg, com exceção daqueles vendidos diretamente ao consumidor por agricultores familiares que disponham do devido cadastro no Mapa. A identificação com selo foi determinada pelo decreto 7.048/2009, que definiu como prazo final para adaptação do setor à norma o dia 31 de dezembro de 2010. O selo, que foi escolhido por consulta pública, é impresso nas embalagens dos orgânicos já certificados pelo ministério.

A lista de itens cadastrados é grande, considerando a variedade do que o campo colhe e coloca no mercado, e abrange os produtos primários, os processados e os industrializados à base de orgânicos. Rogério Dias, coordenador de Agroecologia do Mapa, destaca que o crescimento do número de certificações é patente e tende a ser contínuo. “Quanto mais produtos primários forem regulamentados, mais processados orgânicos estarão disponíveis aos consumidores.” Dias lembra ainda que o incremento da oferta destes últimos itens tem a virtude de aumentar os lucros.

Caso de governo

Os passos que conduzem à certificação, é bom salientar, obedecem a critérios bastante rígidos. “Seguimos diretrizes que vão da produção primária e da conservação do solo à industrialização, armazenamento e transporte”, explica o engenheiro-agrônomo Alexandre Harkaly, diretor executivo do IBD Certificações, uma das empresas credenciadas pelo Mapa. Ele esclarece que o selo conferido ao produto certificado vale tanto para frutas e hortaliças quanto para laticínios e carnes. Atuando há décadas no setor – foi um dos fundadores do Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento (IBD), em 1983 –, Harkaly sente-se à vontade para opinar sobre o ramo. Ele acredita que a lei e suas instruções normativas terão, necessariamente, de passar por um aperfeiçoamento técnico, mas não deixa de reconhecer que “temos hoje um patamar mínimo de exigências que obrigaram as certificadoras a seguir os mesmos padrões”. Entretanto, observa, é essencial que o Mapa exerça uma fiscalização eficiente e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) desempenhe seu papel com rigor. “Também é preciso avaliar se todos os participantes da cadeia de produtos orgânicos estão seguindo os ditames que a legislação estabeleceu”, assinala.

O diretor do IBD salienta que antes do advento da lei e de sua regulamentação, ninguém tinha como reclamar de problemas ou mesmo de fraudes. “Nem o consumidor nem a certificadora, e muito menos o produtor, sabiam como fazer valer seus direitos”. Agora, tudo é diferente. Assim, por exemplo, caso desconfiem da situação de um agricultor perante o Mapa, os interessados poderão encaminhar uma solicitação ao ministério, questionando, por exemplo, se determinado produtor ou entidade estão inscritos em seu cadastro. E tanto agricultores quanto consumidores podem acionar as autoridades caso identifiquem ou tenham indícios de que a lei está sendo burlada.

Hoje, felizmente, a alimentação saudável é caso de governo. Mesmo que não ainda na dimensão desejada, o apoio começa a chegar, especialmente para os pequenos produtores. Nos últimos três anos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) investiu mais de R$ 39 milhões com a finalidade de impulsionar a produção de 87,4 mil lavradores familiares envolvidos com agricultura orgânica e agroecológica. “O MDA pretende aumentar a base produtiva orgânica no decorrer de 2012 pelo fortalecimento das redes e das organizações que atuam com agricultura familiar e incrementar a comercialização nos mercados institucionais e privados atendidos pelo setor”, relata Arnoldo de Campos, diretor do Departamento de Geração de Renda e Agregação de Valor da Secretaria da Agricultura Familiar do MDA.

Os cuidados que hoje cercam a produção de alimentos orgânicos começam a se refletir na popularização do setor, que passou a frequentar as páginas da imprensa com mais assiduidade. É através dela que os leitores ficam sabendo, por exemplo, que “os produtos orgânicos, tanto de origem animal quanto vegetal, são mais saudáveis e têm mais sabor”, informa o Mapa, garantindo que eles chegam à mesa do consumidor com as vitaminas e os minerais preservados. Mas não é só isso. Um estudo realizado nos Estados Unidos, em 2007, constatou que os alimentos livres de agrotóxicos e de adubos químicos contêm 40% mais antioxidantes que os cultivados pela agricultura tradicional. Capazes de retardar o processo de envelhecimento, os antioxidantes ainda combatem os radicais livres, moléculas instáveis que afetam negativamente o organismo.

Copa orgânica

“Realçando as virtudes do produto orgânico, a mídia acaba contribuindo para sensibilizar as pessoas quanto às suas vantagens”, observa Nardi Davidsohn, dono da Quintal dos Orgânicos, na capital paulista, possivelmente a maior empresa varejista do setor no país. Ele conta que trabalha com 50 fornecedores, do sul ao nordeste, e comercializa mais de mil itens, que são avidamente disputados por uma clientela formada, essencialmente, por mulheres com idade entre 30 e 50 anos. Esse é, na realidade, o perfil das pessoas que estão aderindo aos orgânicos, quase todas elas donas de casa preocupadas com a saúde da família, e que estão virando freguesas da seção especializada em alimentos saudáveis de supermercados, quitandas e bancas de feiras agroecológicas, além de lojas de rua como a do empresário Davidsohn, que crescem a olhos vistos em todo o Brasil.

Frutas, hortaliças, legumes e tubérculos, um mundo de alimentos cultivados sem o uso de agrotóxicos e adubos. Nos últimos anos, essa fartura vinda do campo passou a pautar a vida do casal Josenil e Luciana Carbone, sitiantes com lavoura em Monte Azul Paulista, a 420 quilômetros de São Paulo, e donos de um boxe na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), no bairro paulistano do Jaguaré. Ali funciona a Terra Frutas Orgânicas, empresa que vende no varejo e no atacado e é abastecida por cem pequenos produtores reunidos em cooperativas. Luciana faz questão de frisar, contudo, que no sítio da família ela e o marido também cultivam goiaba, carambola e limão orgânicos. Ela ressalta ainda que mais de metade dos produtos da Terra Frutas Orgânicas são vendidos para pessoas que os comercializam em cestas.

A experiência pioneira dos Carbone, assim como os passos certeiros dados pelo comerciante Davidsohn, podem ser encontrados em outras partes do país. “Nossa história começou em 1996, quando chegamos a Pernambuco vindos do sudeste e começamos a cultivar orgânicos e a vendê-los em feiras agroecológicas”, relata Silvia Sabadell, titular da Comadre Fulozinha, do Recife, empresa dedicada exclusivamente ao comércio de alimentos orgânicos. Ela conta que, com o passar dos anos, surgiu a ideia de criar uma loja virtual na internet, com entregas em domicílio. “Os agricultores que, no passado, eram nossos companheiros de feira hoje são fornecedores da Comadre Fulozinha”, comenta Silvia. Ela declara que as frutas e as verduras que comercializa vêm dos municípios de Chã Grande, Feira Nova, Glória do Goitá, Goiana, Gravatá, Lagoa de Itaenga, Pombos e Vitória de Santo Antão. “Estou bastante satisfeita com o desenvolvimento de meu negócio e com as reais possibilidades de expansão, pois a procura por orgânicos só tem aumentado”, acentua.

Uma coisa é certa: o setor poderá vir a conhecer uma acelerada expansão nos próximos anos em razão, principalmente, do crescente receio das pessoas de levar para casa alimentos contaminados com produtos químicos. Ainda está fresca na cabeça dos brasileiros a notícia divulgada no final do ano passado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com base em estudos iniciados em 2010, sobre a presença alarmante de agrotóxicos numa lista de frutas, hortaliças e legumes de largo consumo.

A Copa do Mundo, em 2014, também deverá dar uma mãozinha ao setor, com a decisão da Federação Internacional de Futebol (Fifa) de recomendar à organização do evento, no Brasil, algumas iniciativas ambientais que podem ajudar a elevar o consumo de produtos orgânicos. Na mira dos organizadores estão, por questões óbvias, os hotéis e os restaurantes. “O público que utiliza os serviços de hotelaria quer se sentir em casa”, afirma a agrônoma Priscila Terrazzan, responsável pelo projeto Caravana Copa Orgânica do IBS, uma iniciativa que se estendeu até meados de 2011 e a levou a visitar 48 cidades em 13 estados. “Ver que o hotel está empenhado em reduzir o consumo de água e de detergente é muito bom, mas levar a preocupação com o meio ambiente para a mesa, oferecendo produtos orgânicos no café da manhã, é algo que com certeza irá surpreender os hóspedes”, completa Priscila. Surpreender e, seguramente, conseguir novos adeptos para a alimentação saudável.

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